A primeira mulher a assumir
o cargo mais importante da República
Muito recentemente, a
propaganda de televisão de uma grande marca mundial de automóveis tentava
vender seu produto ilustrando a mudança do papel social da mulher. Uma jovem
com trajes de executiva chegava em casa após um dia de trabalho e cumprimentava
seu marido, o qual estava ocupado preparando a refeição da família. Para
surpresa desse homem, que “comandava” a cozinha e cuidava de suas filhas, sua
esposa o presentearia com um carro novo. A partir dessa cena, rapidamente aqui
descrita, pode surgir a seguinte pergunta: esse comercial faria sentido décadas
atrás? Certamente que não. Contudo, essa resposta carece de uma explicação
menos simplista, e requer uma maior compreensão do que se chama de questões de
gênero e papéis sociais.
Mulheres e homens ao longo
de boa parte da história da humanidade desempenhavam papéis sociais muito
diferentes. Mas do que se trata o papel social? Segundo a Sociologia, trata-se
das funções e atividades exercidas pelo indivíduo em sociedade, principalmente
ao desempenhar suas relações sociais ao viver em grupo. A vida social pressupõe
expectativas de comportamentos entre os indivíduos, e dos indivíduos consigo
mesmos. Essas funções e esses padrões comportamentais variam conforme diversos
fatores, como classe social, posição na divisão social do trabalho, grau de
instrução, credo religioso e, principalmente, segundo o sexo. Dessa forma, as
questões de gênero dizem respeito às relações sociais e aos papéis sociais
desempenhados conforme o sexo do indivíduo, sendo o papel da mulher o mais estudado
e discutido dentro dessa temática, haja vista a desigualdade sexual existente
com prejuízo para a figura feminina. Assim, enquanto o sexo da pessoa está
ligado ao aspecto biológico, o gênero (ou seja, a feminilidade ou masculinidade
enquanto comportamentos e identidade) trata-se de uma construção cultural,
fruto da vida em sociedade. Em outras palavras, as coisas de menino e de
menina, de homem e de mulher, podem variar temporal e historicamente, de
cultura em cultura, conforme convenções elaboradas socialmente.
As diferenças sexuais
sempre foram valorizadas ao longo dos séculos pelos mais diferentes povos em
todo o mundo. Algumas culturas – como a ocidental – associaram a figura
feminina ao pecado e à corrupção do homem, como pode ser visto na tradição judaico-cristã.
Da mesma forma, a figura feminina foi também associada à ideia de uma
fragilidade maior que a colocasse em uma situação de total dependência da
figura masculina, seja do pai, do irmão, ou do marido, dando origem aos moldes
de uma cultura patriarcalista e machista. Assim, esse modelo sugeria a tutela
constante das mulheres ao longo de suas vidas pelos homens, antes e depois do
matrimônio.
Aliás, o casamento enquanto
ritual marcaria a origem de uma nova família na qual a mulher assumira o papel
de mãe, passando das “mãos” de seu pai para as de seu noivo, como se vê no ato
da cerimônia.
Mas como aqui já se
abordou, se as noções de feminilidade e masculinidade podem mudar ao longo da
história conforme as transformações sociais ocorridas, isto foi o que aconteceu
na cultura ocidental, berço do modo capitalista de produção. Com o surgimento
da sociedade industrial, a mulher assume uma posição como operária nas fábricas
e indústrias, deixando o espaço doméstico como único locus de seu trabalho
diário. Se outrora a mulher deveria apenas servir ao marido e aos filhos nos
afazeres domésticos, ou apenas se limitando às tarefas no campo – no caso das
camponesas europeias, a Revolução Industrial traria uma nova realidade
econômica que a levaria ao trabalho junto às máquinas de tear. Obviamente, não
foram poucos os problemas enfrentados pelas mulheres, principalmente ao se
considerar o contexto hostil de um regime de trabalho exaustivo no início do
processo de industrialização e formação dos grandes centros urbanos.
Após um longo período de
opressão e discriminação, a passagem do século XIX para o XX ficou marcada pelo
recrudescimento do movimento feminista, o qual ganharia voz e
representatividade política mais tarde em todo o mundo na luta pelos direitos
das mulheres, dentre eles o direito ao voto. Essa luta pela cidadania não seria
fácil, arrastando-se por anos. Prova disso está no fato de que a participação
do voto feminino é um fenômeno também recente para a história do Brasil. Embora
a proclamação da República tenha ocorrido em 1889, foi apenas em 1932 que as
mulheres brasileiras puderam votar efetivamente. Esta restrição ao voto e à
participação feminina no Brasil seriam consequência do predomínio de uma
organização social patriarcal, na qual a figura feminina estava em segundo
plano. Mesmo com alguns avanços, ainda no início da segunda metade do século
XX, as mulheres sofriam as consequências do preconceito e do status de
inferioridade. Aquele modelo de família norte-americana estava em seu auge, em
que a figura feminina era imaginada de avental e com bobs nos cabelos, no meio
da cozinha, envolta por liquidificador, batedeira, fogão, entre outros
utensílios domésticos. Seria apenas no transcorrer das décadas de 50, 60 e 70
que o mundo assistiria mudanças fundamentais no papel social da mulher,
mudanças estas significativas para os dias de hoje. O movimento contracultural
encabeçado por jovens (a exemplo do movimento Hippie) transgressores dos
padrões culturais ocidentais outrora predominantes defendiam uma revolução e
liberação sexual, quebrando tabus para o sexo feminino, não apenas em relação à
sexualidade, mas também no que dizia respeito ao divórcio.
Como se sabe, o
desenvolvimento de novas tecnologias para a produção requer cada vez menos o
trabalho braçal, necessitando-se cada vez mais de trabalho intelectual.
Consequentemente, criam-se condições cada vez mais favoráveis para a inserção
do trabalho da mulher nos mais diferentes ramos de atividade. Ao estudar cada
vez mais, as mulheres se preparam para assumir não apenas outras funções no
mercado de trabalho, mas sim para assumir aquelas de comando, liderança, cargos
em que antes predominavam o terno e a gravata. Essa guinada em seu papel social
reflete não apenas nas relações de trabalhos em si, mas fundamentalmente nas
relações sociais com os homens de maneira em geral. Isto significa que mudanças
no papel da mulher requerem mudanças no papel do homem, o qual passa por uma
crise de identidade ao ter de dividir um espaço no qual outrora reinava
absoluto.
Mulheres com maior grau de
escolaridade diminuem as taxas de natalidade (têm menos filhos), casam-se com
idades mais avançadas, possuem maior expectativa de vida e podem assumir o
comando da família como no exemplo da propaganda de automóvel citada.
Obviamente, vale dizer que as aspirações femininas variam conforme seu nível de
esclarecimento, mas também conforme a cultura em que a mulher está inserida.
Contudo, é preciso se
pensar que mesmo com todas essas mudanças no papel da mulher, ainda não há
igualdade de salários, mesmo que desempenhem as mesmas funções profissionais,
ainda havendo o que se chama de preconceito de gênero. Além disso, a mulher
ainda acaba por acumular algumas funções domésticas assimiladas culturalmente
como se fossem sua obrigação e não do homem – funções de dona de casa. Da mesma
forma, infelizmente a questão da violência contra a mulher ainda é um dos
problemas a serem superados, embora a “Lei Maria da Penha” signifique um avanço
na luta pela defesa da integridade da mulher brasileira.
Mas a pergunta principal
vem à tona: qual o papel da mulher na sociedade atual? Pode-se afirmar que a
mulher de hoje tem uma maior autonomia, liberdade de expressão, bem como
emancipou seu corpo, suas ideias e posicionamentos outrora sufocados. Em outras
palavras, a mulher do século XXI deixou de ser coadjuvante para assumir um
lugar diferente na sociedade, com novas liberdades, possibilidades e
responsabilidades, dando voz ativa a seu senso crítico. Deixou-se de acreditar
numa inferioridade natural da mulher diante da figura masculina nos mais
diferentes âmbitos da vida social, inferioridade esta aceita e assumida muitas
vezes mesmo por algumas mulheres.
Hoje as mulheres não ficam
apenas restritas ao lar (como donas de casa), mas comandam escolas,
universidades, empresas, cidades e, até mesmo, países, a exemplo da presidenta
Dilma Roussef, primeira mulher a assumir o cargo mais importante da República.
Dessa forma, se por um lado a inversão dos papéis sociais ilustrada pela
campanha publicitária (citada no início do texto) de um automóvel está em
dissonância com um passado não tão distante, por outro lado mostra os sinais de
um novo tempo que já se iniciou. Contudo, avanços à parte, é preciso que se
diga que as questões de gênero no Brasil e no mundo devem sempre estar na pauta
das discussões da sociedade civil e do Estado, dada a importância da defesa dos
direitos e da igualdade entre os indivíduos na construção de um mundo mais
justo.
Paulo Silvino Ribeiro
Colaborador Brasil Escola
Bacharel em Ciências Sociais pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
Mestre em Sociologia pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Doutorando em Sociologia pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
Colaborador Brasil Escola
Bacharel em Ciências Sociais pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
Mestre em Sociologia pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Doutorando em Sociologia pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
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