domingo, 1 de março de 2015

Aos 450 anos, o Rio (ainda) é uma aldeia

 


Ao completar 450 anos neste primeiro de março e a despeito de seus 6 milhões de habitantes, o Rio de Janeiro ainda é uma aldeia. Pelo menos para mim, que cheguei de São Paulo há mais de uma década. 

Nunca morei em uma propriamente dita, mas aldeia, na minha imaginação, é um lugar que se define por uma certa previsibilidade do cotidiano. Algo que se resume afetivamente a uma rua. O barbeiro sempre estará no começo da tarde conversando com os mesmos clientes, as crianças uniformizadas passarão pontualmente às 7 da manhã cantando marchinhas, o homem da papelaria adivinhará o que vou pedir e o dono da mercearia quase-surdo contará suas moedas ao comentar sobre o assalto recente. O vizinho transexual debruçado na varanda dará bom dia, os garis farão pausa no início da madrugada no boteco e com o caminhão ainda ligado tomarão sua cerveja gelada enquanto o rádio toca música, a mulher do andar debaixo vai rezar em voz alta para espiar alguma desgraça ou então desligará o fusível do poste de luz na hora de acabar com a festa alheia na madrugada. 
Nesses treze anos, a aldeia mudou também. Se encheu de carros. Ficou mais cara. Mas também não mudou: seus donos continuam os mesmos. Os proprietários hereditários dos melhores imóveis continuam lá, os empresários da TV e seus interesses pecuniários, os desembargadores. No Rio o capitalismo não fincou raízes como em SP. De fato, tem-se a impressão de que Dom João VI apenas acabou de sair – é uma sociedade de inspiração estamental. Cenas de trens lotados e acidentados se repetem, os massacres nas favelas permanecem, às vezes parece que nada avança. É o lado angustiante da aldeia, ao menos para quem vem de outra experiência mais dinâmica de metrópole.
No ano passado passei seis meses nos Estados Unidos. Quando voltei para casa no bairro de Laranjeiras, notei que a rua congelara: as árvores, as rachaduras dos muros, as pichações, o asfalto torto, o bueiro de gás vazando. Havia apenas uma novidade: uma carcaça de carro abandonado sem rodas na calçada em frente ao prédio. Ficou lá semanas. Aquilo me incomodou muito, como o primeiro sinal do retorno a um lugar disfuncional. Só voltei a gostar do Rio, do meu bairro, da minha rua, quando passei a enxergar de novo tudo com o olhar da aldeia. A graça reviveu.
Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a cultura portuguesa é como porta giratória: expele e absorve ao mesmo tempo. É de aldeia e cosmopolita simultaneamente. Acho que o Rio de Janeiro tem esse espírito. É um lugar meio lusitano. Me remete sentimentalmente à aldeia perto de Coimbra de onde vieram meus ancestrais. Só mais tarde descobri o Rio africano. Mas essa é outra história.


FONTE: YAHOO BRASIL NOTÍCIAS

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