segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um ano após tragédia na Kiss, lei nacional ainda não saiu do papel

Pronto há mais de sete meses, projeto ainda não foi votado na Câmara.
No Rio Grande do Sul, nova lei foi aprovada, mas falta regulamentação.

Márcio Luiz Do G1 RS
Incêndio na casa noturna matou 242 pessoas (Foto: Felipe Truda/G1)Incêndio na casa noturna matou 242 pessoas (Foto: Felipe Truda/G1)
 
A tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, alertou para a necessidade de aprimorar a legislação de prevenção a incêndios e reforçar a fiscalização sobres casas noturnas, bares e similares. Um ano depois, no entanto, a lei nacional prometida pelos deputados para unificar as normas de segurança em todo o país ainda não foi votada.

Mesmo a nova legislação do Rio Grande do Sul, aprovada na Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador no final de dezembro, ainda depende de regulamentação e pode levar meses até que seja aplicada na prática. Enquanto isso, nada impede que a sucessão de falhas que deixou um saldo de 242 mortos em Santa Maria se repita em outro lugar.

Desta segunda (20) até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio na Kiss.

A tragédia de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.
 
Nos dias seguintes ao incêndio, a Câmara dos Deputados anunciou a criação de uma Comissão Externa para acompanhar os desdobramentos da tragédia e apresentar uma proposta legislativa sobre o tema. Mas a mobilização inicial dos parlamentares perdeu força ao longo dos meses. Concluído em junho passado, o projeto de lei aguarda há mais de sete meses para ser levado à votação em plenário.

De acordo com o deputado Paulo Pimenta (PT-RS), que coordenou a comissão, outras proposições consideradas prioritárias passaram à frente da pauta de votações, como o programa Mais Médicos, a minirreforma eleitoral e o Marco Civil da Internet. Mas também faltou sensibilidade dos deputados para o tema, na avaliação do parlamentar.
 
“Tivemos um semestre difícil, mas acho que o motivo principal (para a demora) é que talvez o impacto do que aconteceu seja diretamente proporcional à proximidade das pessoas com o fato. Eu, como morador de Santa Maria, convivo muito com a tragédia, mas para outros deputados há um certo distanciamento. E talvez isso efetivamente tenha feito com que a Casa não tenha compreendido a importância de que tivéssemos completado um ano da tragédia já com uma nova legislação em vigor no país”, justifica.

Pimenta diz que o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), assumiu o compromisso de que o projeto será votado em fevereiro, na volta do recesso parlamentar, e que já há acordo de líderes de bancada para aprovação. O deputado federal também afirma que senadores do Rio Grande do Sul e de outros estados prometeram analisar rapidamente a proposta, que depois ainda passará pela sanção presidencial.

Entre outras normas, o texto define as responsabilidades de bombeiros e agentes públicos na fiscalização dos estabelecimentos, prevê a criminalização da superlotação em casas noturnas e similares e extingue o sistema de pagamento com comandas, todos fatores que contribuíram para o horror de Santa Maria. Estados e municípios continuarão a ter suas próprias leis próprias, mas terão que adaptá-las às normas e exigências da lei federal.

"O projeto enfrenta principalmente a questão de impunidade, essa dificuldade que a gente tem hoje de saber com clareza quem foram os responsáveis, esse verdadeiro jogo de empurra que existe no poder público. Define com clareza a responsabilidade da prefeitura, dos bombeiros, dos proprietários, dos técnicos que aprovam projetos e estabelece um padrão mínimo de exigência que deve ser observado em todo o Brasil", diz Pimenta.

Lei estadual espera regulamentação e dará mais autonomia a bombeiros

 Também formulada por uma Comissão Especial, a nova lei estadual de prevenção a incêndios foi aprovada em 11 de dezembro e sancionada pelo governador Tarso Genro no dia 26 do mesmo mês.

As novas normas estão em vigor desde então, mas para serem aplicadas de fato ainda dependem da regulamentação, que vai definir prazos para cumprimento, valor de multas e sanções, entre outros itens.

Adão Villaverde presidiu comissão deu origem a nova lei de incêndios (Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS)Adão Villaverde presidiu comissão deu origem a nova lei de incêndios do Rio Grande do Sul (Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS)
 
De acordo com o deputado Adão Villaverde (PT), presidente da comissão e autor da proposta, o Executivo se comprometeu a publicar o decreto regulamentar ainda no primeiro semestre. Procurada pela reportagem para comentar o assunto, a assessoria de imprensa da Casa Civil não respondeu aos questionamentos.
 
A regulamentação depende da criação de um conselho estadual formado por entidades relacionadas à prevenção de incêndios, como Corpo de Bombeiros, Conselho de Engenharia e Agronomia (Crea) e Conselho de Arquitetura e Urbanismo (Cau), entre outras. Essa conselho irá detalhas como a lei será aplicada e também terá um papel normativo, consultivo e atualizador da legislação, mas ainda não foi criado.

O comandante do Corpo de Bombeiros do estado, coronel Eviltom Pereira Diaz, diz que comissões internas foram formadas em todos os comandos regionais para elaborar as normas técnicas que darão subsídios à lei, além de outras sugestões da corporação. Esse trabalho, iniciado no começo de janeiro, deve se encerrado até o final da semana.

Entre as principais novidades da nova lei gaúcha estão a ampliação do número de itens obrigatórios a serem considerados na elaboração do Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI), a exigência de brigadistas treinados no combate a incêndios em locais com 200 ou mais pessoas e a exigência do alvará dos bombeiros para funcionamento do imóvel.

Uma das maiores críticas dos bombeiros à legislação anterior era de que ela não permitia que a boate Kiss, por exemplo, fosse interditada. Na nova versão, os bombeiros terão amplos poderes de interdição e também poderão contar com um quadro técnico de especialistas para atuar na fiscalização, que não necessitará de vínculo com a Brigada Militar.

“O nível de exigência da nova lei é infinitamente superior à legislação anterior. Não haverá autorização de funcionamento de qualquer edificação sem o alvará de prevenção contra incêndio. Sob a nova legislação, a Kiss estaria fechada, a tragédia seria evitada. Se o bombeiro detectou que na edificação não há o cumprimento do que foi exigido, ele pode chegar lá e fazer a interdição”, diz o deputado Villaverde.

Caminhões de bombeiros no quartel central do Corpo de Bombeiros de Santa Maria (Foto: Felipe Truda/G1)Caminhões de bombeiros no quartel central do Corpo de Bombeiros de Santa Maria (Foto: Felipe Truda/G1)
 
Bombeiros e especialistas concordam. Para o engenheiro civil Telmo Brentano, professor da UFRGS e PUCRS e especialista em combate a incêndio em edificações, a nova lei deixou descobertas algumas brechas, mas parte de um texto base bom, sobretudo quando trata das atribuições e responsabilidades do poder público.

“O que vai melhorar é a fiscalização, que era mito precária por parte das prefeituras e Corpo de Bombeiros. A legislação do Rio Grande do Sul era uma das piores do Brasil, mas se tivessem sido obedecidas as leis ou fiscalizado a boate adequadamente, esse tragédia não teria acontecido”, analisa o especialista.

A preocupação de setores do Corpo de Bombeiros agora é em como atender a demanda de fiscalização imposta pela lei. Segundo o coordenador da Associação dos Bombeiros do Rio Grande do Sul (Abergs), a corporação está presente em apenas 20% dos 497 municípios do estado e falta efetivo e equipamentos.

“Com certeza existe essa preocupação por parte dos comandantes e servidores dos bombeiros. A legislação é positiva, é construtiva em fiscalizar os estabelecimentos, mas estamos preocupados em como atender a essa demanda. Até porque, por parte do estado, ainda se não mostrou preocupação em aumentar o efetivo e oferecer melhores condições de trabalho”, critica.

Procura por PPCI subiu 236% em um ano
Se por um lado a resposta do poder público e da Justiça ao drama de Santa Maria tem sido lenta – até agora ninguém foi responsabilizado pelas 242 mortes, tanto na esfera civil quanto na criminal e militar –, por outro já é possível notar o aumento na cultura da prevenção e na conscientização da sociedade em relação a incêndios.

Segundo dados do Crea-RS, o número de Anotações de Responsabilidade Técnica (ART) de PPCIs cresceu 236% no estado em um ano, passando de 6.679 em 2012 para 22.482 em 2013. Em Santa Maria, o número saltou de 282 para 834 no mesmo período, o equivalente a um crescimento de 195%.

A quantidade de ARTs recolhidas pelo Crea-RS indica que profissionais habilitados estão sendo procurados para elaborar os planos de prevenção contra incêndio. Segundo o engenheiro Luciano Ramos Fávero, que trabalha com a elaboração de PPCIs, muitos empresários do setor de entretenimento foram obrigados a regularizar seus imóveis após as blitze de fiscalização deflagradas por prefeituras em todo o país. Mas também há quem tenha procurado a orientação de profissionais por conta própria.  

“Aumentou bastante a procura por PPCIs. As pessoas se sensibilizaram, as empresas se sensibilizaram. O aumento da fiscalização também provocou isso. No meu caso, fui procurado por empresas que tinham demandas reprimidas no domingo de manhã, logo após o evento na Kiss. Houve aumento da procura pela regularização. Teve empresas que estavam com processos relativamente parados que resolveram quase que imediatamente seguir com os processos”, atesta o engenheiro.

As novidades nas novas leis contra incêndio

 Projeto de lei federal

- A lei abrange casas noturnas, bares, cinemas, teatros e estabelecimentos similares com capacidade igual ou superior a 100 pessoas, além de prédios públicos.

- Proíbe o sistema de comandas para o pagamento de entrada e consumo.

- Estabelece a exigência do alvará de prevenção e proteção contra incêndio emitido pelo Corpo de Bombeiros para que o poder público municipal forneça o alvará de licença.

- Estados e municípios terão que observar as normas técnicas expedidas pela ABNT, Inmetro ou Conmetro nas legislações contra incêndio.

- Determina a contratação de seguro de acidentes pessoais, pelos proprietários dos estabelecimentos, tendo como beneficiários os seus clientes.

- O poder público municipal e o Corpo de Bombeiros deverão manter disponíveis na internet as informações referentes aos alvarás de licença ou autorização dos estabelecimentos.

- Torna crime, com pena de seis meses a dois anos de detenção e multa, aqueles que descumprirem as determinações do Corpo de Bombeiros ou do poder público quanto à prevenção e combate a incêndios.

- Donos dos estabelecimentos e agentes públicos que deveriam fazer a fiscalização podem ser responsabilizados em caso de incêndio em locais irregulares.

- Prefeitos e oficiais dos bombeiros podem responder por improbidade administrativa se não obedecerem a legislação e os prazos de vistoria e fornecimento de alvarás.

Projeto de lei estadual
- A lei aplica-se a todas os imóveis que não sejam unifamiliares exclusivamente residenciais.

- Estabelece a exigência do alvará de prevenção e proteção contra incêndio emitido pelo Corpo de Bombeiros para que o poder público municipal forneça o alvará de licença.

- Torna mais rígida a obtenção de alvarás de prevenção contra incêndios no estado. As edificações passam a ser classificadas por categorias (baixo, médio ou alto risco de incêndio) e cada uma delas terá exigências diferentes de normas e itens de segurança.

- Passa a considerar o tipo de uso das edificações, a lotação máxima, a capacidade de controle e extração de fumaça e a carga de incêndio para a elaboração do Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI).

- Estabelece o prazo de validade para o alvará contra incêndio dos bombeiros, de um ano para locais onde há reunião de público, com carga de incêndio média e alta e elevado risco de incêndio, e três anos para as demais edificações.

- Estabelece a exigência de um ou mais brigadistas treinados no combate à incêndio em eventos com mais de 200 pessoas.

- As punições para infração variam entre notificação, multa, interdição e embargo. As três primeiras serão aplicadas pelo Corpo de Bombeiros, enquanto o embargo fica a cargo da prefeitura.

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 pessoas feridas. O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1925.

O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é de que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material usado para isolamento acústico (espuma irregular), a utilização do sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor, e exaustão de ar inadequada.

Estão em andamento os dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso e tentativas de homicídio e outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era de oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.

Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual, estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória em maio do ano passado. Entre os bombeiros investigados está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a função de comandante do 4º CRB de Santa Maria.

Atualmente, a Justiça está na fase de depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O próximo passo será ouvir as testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, o juiz deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo. Se o magistrado pronunciar o réu, vai a júri. Senão, é absolvido. Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime. Neste caso, ela vai julgar a causa de forma individual. Também existe a chance de absolvição sumária dos réus. Em todas as hipóteses cabe recurso.

No âmbito das investigações, três estão sendo conduzidas pela Polícia Civil. Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate, um inquérito apura as atividades da empresa Hidramix e outro uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais na tragédia.






FONTE: G1 - O PORTAL DE NOTÍCIAS DA GLOBO

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